quarta-feira, janeiro 31, 2007

Sem título


por detrás de mim
eu
outra que me observa.


Lisboa, 30 de Janeiro de 2007



domingo, janeiro 28, 2007


Voltarei dentro de dois ou três dias. Até lá creio nem ir saber onde estará o computador - obras em casa!

:( :( :(



Deixo-vos com esta quase anedota lida no livro citado abaixo:


- O outro dia estive a ler o que Mestre Almada dizia sobre o comércio em Arte: "Ora, em Arte, não só não é crime o negócio, como é indispensável que a Arte represente de facto fortuna. Fortuna em todos os sentidos. Simplesmente: fazer fortuna com a Arte não é o mesmo que Arte para fazer fortuna. Só o primeiro é bom negócio."

- Eu tenho vendido muito mal os meus quadros, fico sempre cheia de amargura, e tristeza. Tenho sincera pena de ter vendido um quadro que eu gostava imenso por 3000$00. Mas as pessoas têm que viver e eu tive que o vender mesmo! Ainda por cima para ficar fechado na sala onde ninguém o vê. Por 3 contos vê lá tu! Vender quadros que não chegam para se viver um mês! É inglório!

- O Stuart de Carvalhais tem uma anedota que é um pintor com um quadro destes que não se percebe nada e um possível cliente a perguntar-lhe "o que é que isto representa?"

E o pintor respondia: "Um mês de refeições."


Conversas com Sarah Affonso, Mª José de Almada Negreiros, Publicações Dom Quixote, 1993




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Amarrações durante a cabotagem # 9




Brinco de palavras

Do Avesso post XL

daily dose of imagery

Prima Scripta

Propylaea

Citizen Mary

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sábado, janeiro 27, 2007

Citando # 167


Até porque aquele que desejaríamos ter sido é tão ou mais importante na definição do que somos do que aquele que na realidade acabámos por ser.


Diz-se a árvore da vida, não se diz a árvore da morte. E todavia é a morte que tem raízes, é a morte que dura e perdura, é a morte que em nós está, em vida e fora dela.


Que sonhar não seja a tua aventura, mas que a tua aventura seja parte do teu sonho.


Não fazem política por vocação ou patriotismo, mas por razões sociais. De resto, não fazendo política, estão na política. E, porque vivem suspensos no vazio, julgam-se acrobatas.


O culto do aforismo ou as palavras vistas de perfil.


As palavras são a minha impaciência. Minha laboriosa impaciência. Em cada palavra, uma âncora.


Marcello Duarte Mathias



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sexta-feira, janeiro 26, 2007

Rodrigo Emílio


Este post é particularmente para o Martim


AGUARELA DO AUTÊNTICO PRESÉPIO

Na Noite de Natal, queria ir por aí fora,
Contigo, minha mãe...
No rasto daquela estrela, vamos, mãe, vamos embora...
Vamos os dois, sem aurora...

Pela noite fora,
— Vem!

Na Noite de Natal
(queria-A eu sem madrugada,
Para entrever, contigo, minha mãe,
Em toda a noite entrevada,
Só horizontes de além...),
não me deixes sem ninguém...

Demos mãos... e, de alma dada,
Vamos, mãe, sem alvorada...

No rasto daquela estrela dourada,

Com aquela estrela de oiro que bem sabe aonde vai...
Que, nos céus, amanheceu,
E que já nos guia a meu pai
Que já morreu
E ‘stá no CÉU,
— Pela Noite de Natal nós caminhemos,
De lés a lés,
E além
Da noite — crepe...

Pra que, depois,
(EU, entre vós dois, — PAI!
— MÃE!,)

Ajoelhemos,
Todos três,
Em PRESEPE!



Do livro Lágrimas ancoradas à sombra do amor (seu primeiro livro)



A formatação está errada mas não consegui manter a formatação original.

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quinta-feira, janeiro 25, 2007

Anoitecidos


O tempo corrido – diálogos perecíveis entre mim e esta vaga noção do tempo. Um apelo sem resposta, a mágoa do que já não posso, a ânsia de tanto para fazer, conhecer, experimentar.

Adensa a noite o diálogo secando na boca as palavras por murmurar. E tudo gira no corrossel onde desconheço o meu lugar.

Amanhã haverá outro dia. Outra ânsia e a corrente que aqui me mantém liberta porque me consente a liberdade.

Fuga veloz que a noite espraia dilacerando sentires.


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quarta-feira, janeiro 24, 2007

Do diário


Gosto destas manhãs assim frias, assim desertas quando a cidade respira e o rio se apruma. O som das ruas faz com que os passos tenham sentido e os nervos reservem em nós o toque indelével do imprevisto.

No Chiado as pedras da calçada ressoam ao passado e sou quase capaz de, na sua transparência, descobrir os passos do Eça ou será do Ega, do Aquilino, do Almada e ainda, ao fundo, num esfumado renascentista, a presença de um Pessoa que, do flagrante de litro, me traz as duplicações da sua genialidade. Sei que por aqui também andaram os políticos mas a manhã está calma, deserta, fria, bela na sua estranha cumplicidade e desses, desculpem, mas eu não quero ouvir falar.

É desta cidade que eu gosto, aquela que pertence aos lisboetas e a todos, que o não sendo, a sabem sentir e dela conhecem a luz, o fascínio, os interstícios por onde só andam as silhuetas dos viajantes, dos observadores, dos instáveis.

Não quero a minha cidade cheia de bancários, de colarinhos brancos, de gentes apressadas e sem tempo para olhar e sentir e, muito menos, dos que morrem de tédio e de azedume.

Que sobre Lisboa continue a descer este manto diáfano onde se acolhe a chuva, o frio, o sol e esta imensa onda de luz e vida.


Lisboa, 23 de Janeiro de 2007



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terça-feira, janeiro 23, 2007

Encostando o ouvido à noite


Se tu soubesses da solidão das palavras
enrolarias o silêncio
na noite sem pirilampos

depois
como numa prece

ouvirias do mar o canto.


HFM - Lisboa, 22 de Janeiro de 2007



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segunda-feira, janeiro 22, 2007

Diurnos


Só uma poalha esconde o mar mas não o seu rugido que agiganta as lendas e os temores. O sol quebra-se com este frio que vem carregado de poalha e de humidade. Mas nada esconde a serenidade do dia que se acaba. Nem o silêncio. Nem o Cabo que não alcanço através da cortina da poalha. Só o sei. E afirmo-o.

Para o delá dos verdes as danças de roda e toda a sonoridade da infância quando este local, que agora habito, era inóspito e vedado à nossa imaginação e aos nossos suspiros. Alarga-se o burgo. Demasiado. Mais estará para vir logo que a pseudo-civilização com a mais valia da auto-estrada vierem trazer a esta terra não o desenvolvimento mas a parolice, a fealdade, a anárquica construção e os magotes de gente destruidores e obscuros.

Por enquanto há o mar, a poalha, o silêncio e eu agradeço.


Ericeira, 21 de Janeiro de 2007



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sexta-feira, janeiro 19, 2007

Punhos de renda




Capa do livro do meu conto - PUNHOS DE RENDA - que uma amiga minha me ofereceu neste Natal, encadernado por si, a partir das folhas dactilografadas que eu, aqui há uns anos, lhe tinha oferecido. A aguarela da capa é minha a partir de uma que vi num livro.



PUNHOS DE RENDA


Tinha sido destacado pelo governo para, junto de empresas especializadas, ver in loco a construção, solidez e manutenção das infra-estruturas das casas venezianas cujos alicerces tinham como âncora o lodoso fundo da laguna. Era na altura um jovem. Com trinta e quatro anos fora o escolhido pelos conhecimentos que adquirira em Oxford onde me especializara em construções sobre fundos aquáticos e obtivera o meu PHD. A família e até alguns dos meus mestres do Instituto Superior Técnico tinham-se rido da escolha feita. A minha brilhante formação ter-me-ia permitido escolher qualquer tema de especialização mas sentia que, num país junto ao mar, alguém tinha que compreender, defender e proteger a nossa costa e saber onde e como aí se poderia construir de forma a preservar o património natural que já se encontrava em perigo pela erosão provocada pelo tempo e pelo homem.

Quando voltara de Oxford, ficara no IST como professor mas como queria trabalhar no terreno entrara para a empresa que numa parceria com o governo me tinha enviado aos trinta e quatro anos, cheio de mordomias, para Veneza.

Veneza foi um deslumbramento. O trabalho era importante e eu gostava do que estava a aprender. Apesar do que deles constava, os italianos eram uns profissionais e a forma como estavam a recuperar Veneza e a tentar que a cidade não ficasse submersa pelas águas da laguna era algo que me implicava num novo projecto que pensava ser importante para o meu país, assim aí o trabalho fosse avaliado como sendo de relevante interesse.

Para além do trabalho, os dias corriam lestos e eu aproveitava aquela nova forma de vida e a liberdade de que dispunha. Era frequentemente convidado para festas ou simples jantares em casa dos meus companheiros de trabalho mas durante o dia vivia entregue a mim mesmo e tinha, quase sempre, duas ocupações.

No final das manhãs, evitava o tradicional almoço pois já sabia que à noite ou tinha jantar fora ou a minha estadia no Hotel Danieli, mesmo ao lado do Palazzo Ducale, incluia essa refeição. Assim, tentando não engordar - o físico era para mim um aspecto muito importante - ia aos fins da manhã para a Plaza San Marco, sentava-me no Florian e comia uma refeição ligeira ou tomava apenas um café e comia uma sanduíche. Para quem não conhece este café, há que fazer uma pequena incursão por esse paraíso de elegância, de bom gosto e de requinte. O café é antigo e o seu interior é pequeno e charmoso mas a sua esplanada, esplêndida quando não chovia ou não fazia demasiado frio, era o local privilegiado para observar a praça e as suas gentes e para nos deliciarmos com o impecável serviço dos seus empregados, esmeradamente vestidos, que nos serviam o simples café numa bandeja decorada a rigor. Tudo ali transpirava bom gosto!

A minha outra mania, se assim lhe poderei chamar, era sentar-me ao fim do dia no terraço do Hotel Danieli, num pequeno bar junto ao famoso restaurante que do alto do hotel domina a laguna. Gostava de contemplar a beleza e o frenesim do que se estendia à minha frente. Só quem conhece Veneza sabe da sua cor, da magia da sua laguna, do frenesim dos barcos, barquinhos, vaporettos, lanchas, gôndolas e de toda essa algazarra marítima que se cruza numa gincana imparável. Com um copo de gin tónico na mão, para ali me deixava ficar observando Veneza, essa cidade misteriosa, atraente, cheia de fantasias e que a água domina.

Nunca o tempo era demasiado para observar aquele milagre anfíbio.

Mas aí estou eu a perder-me nas recordações que essa cidade ainda hoje deixa em mim. Não foi para isto que me sentei a escrever. O que pode interessar aos leitores as divagações de um jovem face à beleza de Veneza? Para quem sonha lá ir só devem irritar. Para quem já lá esteve é apenas um conjunto de banalidades, havendo ainda que ter em conta todos aqueles que dizem não gostar de Veneza! Custa-me sempre a crer que haja alguém que não goste de Veneza!

Mas voltemos ao fio da história. Falava-vos da cidade dos doges apenas para situar a minha história, melhor as recordações que dela tenho e aquela dose de nostalgia que guardo em mim, bem como tudo o que vim a saber há bem pouco tempo e que me trouxe a memória desses dias despreocupados, em que me lançava numa carreira que ninguém augurava de grande prestígio ou reconhecimento.

Um dia, sentado no Florian por entre aquela amálgama de gente que ali estava, turistas, viajantes, elites do mundo, ou a alta sociedade da cidade, reparei num velho que se aproximava do Florian. Um homem sem idade, nem alto nem baixo, de bengala com castão de prata, todo vestido de branco. Era primavera e apenas uma brisa corria na praça. Reparei melhor nele. Apesar da idade que não sabia quantificar ele vinha de sapatos brancos, sem uma mancha de pó, calças acabadas de passar e de soberbo corte, com uma camisa imaculadamente branca que abotoava num folho de rendas brancas e com punhos de renda. Na cabeça, um chapéu branco. Parecia uma figura saída de nenhures ou de algum álbum do século passado. Quando abandonei as minhas divagações, vi que um dos empregados se dirigia a ele, o cumprimentava - cliente habitual, pensei de seguida - afastava uma cadeira para ele se poder sentar, falava com ele com um ar de quem o conhece há muito e seguia para fazer o pedido. Entretanto tinham chegado os músicos que tocavam no pequeno palanque que dominava a esplanada do Florian, músicos que eu já conhecia e que me deliciavam enquadrando o ambiente e a imaginação. Reparei que também os músicos cumprimentavam o velho, assim como a maioria dos criados que, saindo dos seus lugares onde se mantinham sempre atentos aos desejos dos clientes, lhe vinham falar afavelmente. Quem seria aquele personagem? pensei para mim.

Enquanto ouvia a música, o meu espírito e olhar foram apanhados por aquele velho de branco vestido e, num anseio de comadre, pensei que gostaria de conhecer a sua vida. Infelizmente a minha hora de almoço estava a acabar e tive de me levantar para me dirigir aos escritórios da empresa que ficavam junto à estação. Teria ainda de andar um bom bocado.

Os dias foram passando e o trabalho era para mim tão interessante, tão envolvente que eu esquecia tudo o mais. Ali, naquela bela e antiga cidade, eu via pôr em prática conceitos que aprendera, conhecimentos anteriormente debatidos e outros que apenas a prática nos pode revelar. Os engenheiros e todo o pessoal técnico eram de uma enorme amabilidade e muito abertos a acolherem-me e a revelarem-me todos os intrincados problemas que aquela cidade lhes colocava e que eles iam torneando e resolvendo num sábio binómio entre a ciência e as necessidades práticas, que só uma técnica sempre em constante inovação conseguia abordar.

Continuava frequentemente a ver o velho de branco que despertava a minha curiosidade e que tão bem se enquadrava naquela esplanada do Florian. Notava sempre o respeito com que os empregados e os músicos o tratavam e o ar coloquial com que ele os abordava, mantendo contudo aquela distância que seguramente lhe vinha do porte senhorial e da educação que recebera desde criança.

Um fim de tarde, em que fora muito cedo jantar a um restaurante cujas mesas bordejavam o Gran Canal, mesmo ao pé da Ponte Rialto, para em seguida me dirigir a um concerto de Vivaldi numa das muitas igrejas de Veneza, vi passar o meu ancião. Vinha de branco, tal como o costumava ver no Florian; reparei apenas que na mão trazia um lenço branco bordado. Atravessou a ponte e de novo o vi desaparecer do outro lado do canal. Só da minha imaginação ele não desaparecia.

Realmente Veneza era uma cidade pequena e uma figura daquelas não podia passar despercebida. Acabada a refeição, também eu atravessei a ponte e, quando cheguei quase ao final das escadas, vi o meu velho de branco a sair de uma loja. Apesar da igreja ficar para o lado contrário, segui na direcção da loja, cruzando-me com ele. Tudo certo!... aquela figura só podia ter saído de um alfarrabista.

Era uma loja aparentemente pequena como muitas lojas de Veneza; talvez para trás tivesse outras divisões o que também era habitual. Mas da rua apenas vi uma montra muito bem decorada, apesar da sua sobriedade, cheia de livros com valiosas encadernações e com algumas gravuras que mereciam um atento estudo a que naquele momento não me podia entregar. O que entrevi dentro da loja revelou-se-me um local de estudo e de silêncio. Havia belíssimas estantes de madeira e mesas sólidas e a um canto um acolhedor espaço que convidava ao estudo e à leitura; digamos que era um espaço requintado, convidativo e calmo, embora um pouco antiquado.

Pensei logo em voltar e assim fiz no sábado seguinte pela manhã.

Por volta das dez, entrei na loja onde apenas se encontrava um empregado que me olhou com um ar interrogativo. Percebi que devia ser um local frequentado por um público muito próprio. Levava a lição bem estudada, e no meu italiano, perguntei-lhe se tinha alguma coisa antiga sobre construção de edifícios em Veneza. Apesar do seu ar simpático e acolhedor, reparei que me olhava como que a perguntar-se quem eu seria e porque estaria interessado naquela temática. Resolvi antecipar-me e responder à sua curiosidade.

Achou graça a que um estrangeiro estivesse ali a estudar a forma de construir e de preservar uma cidade que vive na laguna, para a laguna e da laguna. Num brilhante profissionalismo, convidou-me a sentar no recanto que eu vislumbrara da rua e em breve tinha na minha frente alguns livros sobre o assunto, algumas gravuras e mapas antigos e alguns catálogos.

- Tome o seu tempo, senhor. Aqui não podemos ter pressa. Tome as notas que precisar. Percorra a concorrência e estou certo que se quiser comprar alguma coisa voltará ao Da Ieri.

- Pelo que me parece, é uma casa muito antiga – disse eu para ser agradável.

- Muito antiga senhor, apesar de ter uma gerência recente em relação à data da sua fundação. A casa data do início do século XIX, a nova gerência tem cerca de 25 anos.

- Agradeço a sua amabilidade. Vou consultar toda a informação que pôs ao meu dispor.

- Esteja à vontade. Tome o seu tempo. Os livros têm de ser manuseados com calma pois carregam a história de muitos anos e transmitem-nos toda a sua carga, negativa ou positiva. Vou preparar um café que já lhe trarei.

Escusado será dizer que nessa manhã já não fui ao Florian. Nem sequer consegui folhear todos os livros e apenas olhei de relance algumas das gravuras. Nunca pensei encontrar à minha disposição tanta informação curiosa que poderia vir a ser-me bastante útil.

Perto da hora do almoço saí, dizendo ao amável empregado que voltaria em breve.

- Volte sempre, senhor. Os livros são piores que as mulheres e os antigos têm um charme ao qual não podemos resistir.

- Muito obrigado e até breve.

- Até breve, senhor. Aqui será sempre um amigo.

Voltei mais dois sábados e alguns fins de tarde ao Da Ieri para consultar a larga bibliografia que me tinha sido posta à disposição. Não tinha resistido e até já comprara um pequeno opúsculo dos finais do séc. XIX sobre Veneza. Nestas minhas estadas no Da Ieri, nunca encontrei contudo o meu enigmático velhote de branco vestido. Foram sempre goradas as minhas tentativas.

Estive quase dois meses sem regressar ao meu alfarrabista e quase sem pensar na enigmática criatura que naquela lendária cidade tanto me tinha perturbado. Perturbado fora eu por outra criatura que, como um ciclone, invadira a minha vida. Refiro-me a Francesca, a bela italiana que conhecera num pôr do sol no Lido, na casa de um engenheiro italiano com quem trabalhava.

Estávamos em meados de Julho, Veneza estava parada num calor peganhento que reflectia as esperanças e os medos. Uma lancha tinha-me vindo buscar e a mais uns colegas ao cais do Hotel Danieli e, mal desci no ancoradouro da casa do meu amigo, apercebi-me de uma figura esbelta, envolta num verde água que, à distância, olhava para aquele grupo de jovens barulhentos. Não foi preciso muito tempo para saber que se chamava Francesca e que era uma reconhecida pianista italiana muito em voga. Tinha acabado de chegar dos Estados Unidos onde se apresentara em concertos com a Orquestra Filarmónica de Boston.

Os nossos olhos encontraram-se mais cedo do que as nossas conversas e toda a noite nos fomos seguindo, aproximando e afastando nesse intrincado jogo das recepções mais ou menos mundanas e informais, onde alguns são mais conhecidos e onde há sempre alguma nova estrela a exibir. Francesca era a estrela dessa noite.

Não havia lugares reservados e, naqueles acasos que ambos provocámos, vimo-nos sentados lado a lado nos jardins da casa face ao mar. Havia mais gente na nossa mesa e a conversa foi pontuada por aquelas banalidades mais ou menos interessantes com que se recheiam estes momentos sociais. Mesmo assim houve tempo para trocar algumas palavras a dois. Não lhe perguntei a idade mas pareceu-me que deveria rondar a minha. Tinha longos cabelos escuros a ornar um rosto moreno de onde se destacavam dois olhos rasgados que uns dias eram azuis, outros dias verdes ou que, como ela sempre me dizia, eram grigi.

Trocámos aquela conversa informal, sussurrada numa voz de filme de suspense. Deliciosa. A conversa e Francesca. Foi uma noite inesquecível. Trocámos os números dos nossos telemóveis e nesse fim de semana aproveitámos para nos vermos mais uma vez, o que fomos repetindo ao longo de dois meses.

Foram dois meses de idílio e amor, descobrindo Veneza com os olhos dos amantes e percorrendo algumas terras ali perto que ela fez questão de me mostrar.

Francesca não era a minha primeira paixão, mas foi ela quem despertou todos os meus sentidos e com quem vivi momentos inesquecíveis e irrecuperáveis.

Uma manhã em que um pouco ensonados fazíamos horas para irmos até casa do engenheiro meu amigo onde nos conhecêramos, que deveria mandar a sua lancha buscar-nos, sentámo-nos no Florian de mãos dadas, naquele uníssono de quem não precisa de palavras.

De repente, por entre as arcadas, vi aproximar-se o meu velho impecavelmente vestido de branco num passo apenas um pouco mais lento, talvez fruto do calor asfixiante que se fazia sentir sobre a cidade.

Não pude deixar de chamar a atenção de Francesca.

- Referes-te a Piero? – perguntou ela.

- Conhece-lo?

- Mas haverá alguém que o não conheça em Veneza? – disse-me ela enquanto se virava para mim com um ar de estupefacta interrogação.

- Eu não sei quem é, apenas a sua figura me despertou a curiosidade e, antes de te conhecer, fiz várias tentativas para saber quem era pois encontrava-o aqui frequentemente.

- Claro, Piero é um assíduo frequentador do Florian. Bastava teres feito a pergunta a algum empregado, ou a algum gondoleiro, ou a alguém que viva nesta cidade. É um longa história que te contarei. Longa e triste.

Foi então que naquele café, num radioso dia de Agosto, eu soube que o meu velho se chamava Piero, que era um marquês e ainda que era o dono do alfarrabista que eu frequentava. O seu trabalho, hoje em dia, era ser uma espécie de consultor de certas pessoas, livreiros e entidades que queriam encontrar, comprar e/ou vender livros raros e antigos.

Mas nem sempre assim fora. Parece que ficara sem pais muito novo, tendo herdado uma valiosa fortuna. Fora um viajante desde muito cedo, um espírito iluminado que percorrera o mundo e se enriquecera das várias e milenares culturas de cada povo. Vivera longos anos no estrangeiro, sobretudo durante a II Grande Guerra. Um dia longínquo, já poucos se lembrariam quando, aportara em Veneza para tomar conta do seu palácio quase em ruínas. Vinha só. A mulher e o filho – o seu herdeiro – continuavam algures na América do Sul, onde o rapaz estudava aguardando que o palácio estivesse pronto. Durante dois anos o velho de agora vivera sozinho em Veneza num hotel, enquanto providenciava a recuperação do palácio. Ausentara-se frequentes vezes para ver a mulher e o filho mas regressava sempre para apressar as obras, para delinear mais um pormenor ou para alterar qualquer outro de que o seu espírito requintado não estava a gostar nos acabamentos do restauro do seu palácio.

Era uma homem mundano; movia-se na esfera do poder e dos lobbies diplomáticos de Veneza. Era especialmente visto em todas as actividades culturais em que aquela cidade era pródiga e diziam alguns que por ele tinham passado algumas das melhores aquisições que vieram a enriquecer o Museu Peggy Guggenheim.

Finalmente o belo palácio encontrava-se recuperado e erguia-se imponente na margem do Gran Canal perto da Ponte Rialto. Todos tinham visto chegar lanchas carregadas de mobílias belíssimas que eram içadas para dentro do palácio através de um complexo jogo de roldanas. Quando tudo ficou definitivamente pronto, só faltava a vinda da bela mulher que, mesmo sem a conhecerem, todos diziam ter os traços de uma princesa, e do jovem herdeiro que viria acabar os estudos em Veneza para depois concorrer à prestigiada universidade de Bolonha. Contudo tal facto nunca se dera; o avião em que vinham foi um dos muitos engolidos no estranho e célebre triângulo das Bermudas. Um desastre que ficara na história da aviação e que engrossara o número dos inexplicáveis acidentes naquela zona.

Ao que se conta em Veneza, dizia-me Francesca, a partir daí Piero modificara-se completamente.

O seu porte atlético deu lugar a um porte senhorial, mas de alguém muitos anos mais velho. Deixou de aparecer nas festas da sociedade veneziana. Passou a andar sempre de branco, inclusive no inverno em que se agasalhava com um casaco de peles branco. Os únicos contactos eram com os empregados do Florian, onde ia todos os fins de manhã tomar um café, e onde no verão aparecia também ao fim da tarde. Baixava a cabeça ou fazia um gesto distante com a mão aos seus ex-amigos e conhecidos, mas palavras apenas com os empregados do Florian e do Da Ieri, um antigo alfarrabista, que entretanto comprara e a que dedicava algum tempo quando algum cliente mais importante requeria a sua presença ou a sua mediação.

Apesar dos seus quarenta e poucos anos quando a mulher e o filho morreram, não lhe era conhecido mais nenhum amor ou sequer algum fugidio affaire. Parece que apenas percorria a vida, numa caminhada solitária e alheia, sempre de branco vestido. O olhar perdido no infinito como a perscrutar a laguna e além. Este seu ar indefeso e longínquo realçava ainda mais o seu porte distinto e o branco imaculado da camisa, sempre com punhos de renda, das calças de um tecido sem rugas e dos sapatos de um branco cor de sal.

Tudo isto Francesca me contava, enquanto brincava com os meus dedos, nesse mesmo lugar onde eu o avistara pela primeira vez e onde ele ficara para sempre gravado na minha memória.

Saciada a curiosidade, continuava a haver uma estranha atracção por aquela personagem cuja história apenas viera aguçar a minha imaginação. Vendo o meu ar ausente, Francesca dissera-me:

- És um romântico incorrigível!

Infelizmente eram horas de nos dirigirmos para o ancoradouro e não pude ficar ali a olhar o meu velho à luz destas novas revelações.

Só voltei ao alfarrabista em finais de Setembro. Entretanto, a minha vida levara outra reviravolta. Francesca saíra dela à mesma velocidade com que entrara. Um dia em Burano, onde tínhamos ido almoçar, ela fora clara e precisa. Tinham sido dois meses inesquecíveis e importantes mas acabara de aceitar o lugar de pianista convidada na Orquestra Sinfónica de Boston, por dois anos, e iria partir em breve. Quando lhe perguntei o que isso tinha a ver com o nosso amor, olhou-me com aqueles olhos grigi e, com o seu sorriso irónico, perguntou-me se achava que o nosso amor tinha saída. Eu ficaria ali por mais um ano, ela estaria dois anos noutro continente e qualquer dos dois tinha uma importante carreira à sua frente que não se compadeceria com sentimentalismos que apenas tinham sido ampliados por aquela estranha cidade.

Não lhe respondi. Não havia resposta possível, fora apanhado no enredado do binómio sentimento/realidade e perdera. Aquela belíssima mulher que ali estava sentada ao sol de Burano, enquadrada pelas cores do arco íris que as casas formavam, não poderia ser a Francesca que eu amava.

Sorri. Um sorriso amargo. Despachei o almoço, paguei a conta, mandei vir uma lancha e regressámos a Veneza onde nos separámos no ancoradouro do Palácio dos Doges. Olhei San Giorgio Maggiore e ouvi os passos de Francesca afastarem-se. Nunca mais a procurei. Nunca mais a vi. Francesca era dentro de mim uma lembrança que eu tinha afundado num rubro pôr do sol na água da laguna.

Voltei então à minha vida anterior e a frequentar o Da Ieri onde o empregado me continuava a tratar principescamente. Um dia, vi o meu velho sair de uma porta do fundo da sala. De branco, direito, impondo a sua figura e como que pairando sobre os locais por onde passava. Nem me viu. Pouco tempo depois, quando regressou ao recanto da sala onde me encontrava, o empregado perguntou-me se eu tinha visto aquele senhor de branco, informando-me ser ele o sócio principal daquela casa. Simulei não saber e fiz apenas um pequeno comentário sobre a sua curiosa figura dizendo que já várias vezes o encontrara no Florian. Acenou com a cabeça e disse-me em tom confidencial ser uma figura muito querida em Veneza apesar de ser uma pessoa de muito poucas falas. E a conversa sobre Piero ficou por aí.

O meu trabalho continuava a decorrer com crescente interesse e tinha já o esboço de um estudo para entregar aos meus superiores. Também em mim ia surgindo uma ideia sobre a defesa da costa portuguesa, particularmente a que se situava a norte de Aveiro, cidade que tinha como principal foco de interesse. Receava no entanto que esse trabalho fosse apenas mais um para engrossar as gavetas do poder. O que sabia seguramente era que, quando acabasse aquele quase estágio, ou em Portugal ou em qualquer outro país, queria continuar a trabalhar dentro daquela área. Essa era a única certeza que tinha naquela altura.

Um dia, sentado no Florian, ouvindo as 4 Estações de Vivaldi tocadas noutro ritmo, vi aproximar-se o meu velho de branco, cumprimentar os empregados e sentar-se no seu lugar habitual. Os meus olhos ficaram de novo pregados naquele personagem vestido de branco e com um ar ausente. Parecia-me sempre mergulhado noutro ambiente e bem distante de tudo o que o rodeava. Como eu o compreendia agora! A mágoa que eu guardava em mim e que escondia o amor que ainda sentia por Francesca, aproximava-me ainda mais daquela figura de outrora que vinha colorir a praça e situá-la num tempo passado e ausente.

Estava tão absorvido na minha contemplação e nos meus pensamentos, que só o barulho me fez voltar à realidade. Havia como que uma sirene a tocar e vi um grupo de polícias a correrem com metralhadoras em riste, uns pelo centro da Praça e outros por dentro da galeria. Ao meu lado, na esplanada, havia um ambiente parado que era acrescentado pelo súbito silêncio da orquestra. As pessoas estavam, umas estáticas, em pé, e outras completamente hirtas nas cadeiras. Os empregados tinham-se todos deslocado para junto da entrada do café e aguardavam com um ar expectante.

Abri e fechei os olhos várias vezes como que para ter a certeza de que o que estava a vivenciar era a realidade. Um grupo de polícias, não sei se seriam bem polícias pois a farda era outra, rodeavam a mesa do meu velho. Tinham-no levantado com movimentos bruscos e tentavam colocar-lhe um par de algemas, enquanto que os empregados, vendo o que estava a passar-se, tinham acorrido a defender o velho, gesticulavam e diziam palavras que eu não conseguia ouvir à distância. Surgido não sei de onde, encontrava-se a poucos passos de mim um carro celular rodeado por uma série de homens de metralhadoras em punho e com ar de poucos amigos. Vi arrastarem o velho, que nunca oferecera qualquer resistência, empurrá-lo para dentro do carro e partirem numa ensurdecedora algazarra de sirenes e vozes de comando.

Tudo fora demasiado rápido. As pessoas olhavam-se incrédulas e pela primeira vez vira os empregados de cabeça perdida e sem o ar profissional que lhes era habitual. Falavam, gesticulavam, coléricos e numa algazarra muito latina. No turbilhão daquela aparatosa prisão que ninguém compreendera, ficara em cima da mesa, esquecido, o lenço branco que o velho tinha sempre na mão e que um criado cerimoniosamente recolhera como uma relíquia mas que um polícia, voltara atrás para resgatar.

Soube pelos jornais e junto dos administradores da empresa com quem falei sobre o assunto que, para espanto de tudo e todos, inclusive da polícia, tinham chegado à conclusão de que ele era um capo da mafia siciliana que há cerca de trinta anos, fugido à polícia, tinha conseguido nas américas fazer uma reconstrução facial e encetar uma nova vida. Conduta irrepreensível, uma fachada bem construída e digna, acesso aos corredores do poder e aos lobbies financeiros, continuara no entanto a mexer os cordelinhos através da loja de alfarrabista, apesar de nunca se juntar a ninguém da sua entourage. Em vez de se refugiar numa vida cinzenta e fora dos holofotes, aquele velho tinha optado por desafiar as luzes da ribalta, e a personagem que construíra era tão verídica e tão recheada de pormenores, que durante aqueles trinta anos escapara por completo à lupa da polícia, que não dava tréguas à sua luta contra a mafia.



HFM - Lisboa, 13 de Junho de 2002



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quinta-feira, janeiro 18, 2007

Referendo 11 de Fevereiro


Nem NÃO nem NIM

SIM


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quarta-feira, janeiro 17, 2007

Sem título


Há o gosto a sublime
Os dedos harpejam uma sinfonia
Cresce em maremoto o oceano


Delírios de porosa pele.


HFM - Novº 06



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terça-feira, janeiro 16, 2007

Citando # 166


Je me suis détesté, je me suis adoré; - puis, nous avons vieilli ensemble.

Paul Valéry



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segunda-feira, janeiro 15, 2007

O mais nobre animal




são de seda e de vento as tuas crinas
indomável o teu porte
quando ante todos e tudo
és a concisão da palavra
liberdade

só o incauto julga o poder pelas rédeas.




HFM - jANº 07

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domingo, janeiro 14, 2007

Amarrações durante a cabotagem # 8




Absorto

adesenhar

Bandida

Nu Singular

O Piano

Solvstäg post Com presunção (água benta)


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sábado, janeiro 13, 2007

De tempos e de olhares



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sexta-feira, janeiro 12, 2007

Sem título



Desprotegida acentua-se a distância
linha quebrada de inseguro rumo.


Lisboa, 2 de Janeiro de 2007



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quinta-feira, janeiro 11, 2007

Anoitecidos

Letra a letra dedilho as palavras e a noite. O frio e aquele sono que se estende para lá da consciência trazem às palavras a paciência e o tempo – fios invisíveis tecendo os argumentos. Foge a noite no silêncio e do rio chega esta bruma – poalha de chuva que espelha as ruas.

Só o sibilino som do silêncio erguendo fantasmas nas luzes dissimuladas e na fantasia que cresce com a memória.

Sinais de que em breve o sono ressurgirá madrugada.

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quarta-feira, janeiro 10, 2007

Vasculhando o sótão




O que gosto neste anúncio é do desenho sobretudo da imponência do carro.

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segunda-feira, janeiro 08, 2007

Continho


Nunca lhe tinham proibido a entrada mas era sempre de lado que a olhavam. Mal vestida. Cabelos encaracoladamente grandes e disformes, fora de moda, muito ao viés da sua idade. Saco de plástico na mão substituindo-lhe a carteira e um ar ausente afagavam-lhe o contorno. Entrava sempre decidida, como qualquer outro. Sabia perfeitamente ao que vinha e o que queria. Cada dia, com o amor a bailar nos dedos esguios com eles abraçava o livro escolhido e, com um sorriso, dirigia-se à sala de leitura. Estava aquecida. Reconfortava-a. Depois, sentava-se. E lia, lia, lia quase sem parar. Os momentos de paragem não eram de repouso. Do saco de plástico retirava um caderno velho e esbeiçado e um lápis e, com um letra bem arrumada e muito miudinha, a toda a altura e a todo o comprimento da folha, copiava largas frases do livro ou poemas. Pouco antes de fecharem a concorrida livraria arrumava tudo com minúcia. Com os dedos de amor afagava o livro e, em passos saltitantes, ia colocá-lo no sítio e baixinho murmurava-lhe: - Até amanhã! Enroscava-se nos seus trajes e partia para a noite, percorria poucas ruas e mergulhava na sua casa – a caixa de papelão debaixo das arcadas. Lá dentro, à luz do candeeiro antigo que pendia do tecto, recopiava em papéis soltos, vezes sem conta, o que tinha escrito no seu velho caderno – assim passava o serão. Fazia-o até que chegasse a carrinha que normalmente ali vinha fazer a distribuição de alguma comida. Depois, enrolava-se no cobertor, ajustava o papelão e adormecia.

No dia seguinte, pontualmente, levantava-se, ajeitava os seus haveres no vão da escada de um Ministério e, no caminho para a instituição onde lhe lavavam a roupa e lhe davam um café e pão e onde, por vezes, podia tomar banho, ia deixando por bancos, no parapeito das casas das concorridas artérias daquela parte da cidade ou noutro qualquer local os papéis que, na véspera, à noite, tinha copiado. Papelinhos que iam assinados – A Milionária das Palavras.



HFM - Lisboa, 3 de Janeiro de 2007



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domingo, janeiro 07, 2007

Amarrações durante a cabotagem # 7


Estas semana apenas três - a semana de computador começou mais tarde e os dias para "visitas" foram intermitentes.


Propylaea


Quatro Caminhos


Tubo de Ensaio


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sexta-feira, janeiro 05, 2007

No rio dos dias


a palavra. átona.
desregrada na sintonia.
exangue. áfona.
outra. perdida a espuma
só a poça de chuva
no vazio. ou seria o deserto?
o ocre. a solidão. o espaço.
a imensidão da cor.

só a palavra. despromovida.

e o concerto dos cellos abafando
a Babel humana.


HFM - Lisboa, 15 de Dezembro de 2006



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quinta-feira, janeiro 04, 2007

O momento gerador de flutuações


Chuviscava ou chovia mesmo? Duvido que te lembres. Sempre foi de alfinete a tua cabecinha, como te costumava dizer. Dizias que a preferias assim à minha memória de elefante. Tinhas realmente uma grande vantagem; com o esquecimento não há lembranças e, na falha delas, nem dor, nem alegria, nem remorsos, nem qualquer outro sentimento inato ou daqueles com que a vida e a educação nos mimoseiam.

Mesmo a minha memória de elefante hesita. Lembro-me do cinzento do dia, contrastando com a alegria soalheira que nos habitava. Sei que não era só a água do mar que me molhava. Lembro-me do espanto de esta estar quente quando cá fora, apesar de ser fim de Agosto, o ar já começava a arrefecer. Disseste-me então ser da corrente quente do Golfo que ali passava. Eu, no fundo, julgava que era o teu calor e sorria. O que me interessava a corrente quente do Golfo? Isso pertencia àquelas fantasias com que os professores nos enchiam a cabeça e os “exercícios” (caramba, que palavra tão em desuso!!!).

A que vem tudo isto, tantos anos volvidos, tanto mar passado por essa corrente? Há pouco, quando prosaicamente estendia roupa na varanda, vi descarregar, duma camioneta, uma espreguiçadeira de lona verde, daquelas de madeira e tudo... e no flash do meu olhar imediatamente me sentei, contigo ao meu lado, nessas duas espreguiçadeiras (pagas a preço de oiro que o dinheiro nesse tempo era pouco) frente ao Mar do Norte, nessa praia belga que dava e dá pelo nome de Coq-sur-Mer.

De Lisboa para a Bélgica, a imediata transferência do presente feito passado quando o olhar nos aporta e nos senta no areal que a memória continuamente refaz.



Lisboa, 3 de Janeiro de 2007



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quarta-feira, janeiro 03, 2007

Do diário


Descansam os olhos sitiados entre betão e carros, precisamente porque descansados atravessam estes muros e vagueiam por acasos e criações. Aconchegam-se ao sol e, como feed-back, trazem-me a crença noutras verdades, noutras vidas. Possíveis.

Que se cumpram as promessas possíveis e se não percam na inutilidade de tantas fontes.


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terça-feira, janeiro 02, 2007

Sísifo


em passos dispersos
por vezes inoportunos
sempre ao viés da vida
nos interstícios dos acasos
perpendicular a mim
por estradas
ora reais ora imaginadas
compulsivamente


caminho para me encontrar.


HFM

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