O momento gerador de flutuações
Chuviscava ou chovia mesmo? Duvido que te lembres. Sempre foi de alfinete a tua cabecinha, como te costumava dizer. Dizias que a preferias assim à minha memória de elefante. Tinhas realmente uma grande vantagem; com o esquecimento não há lembranças e, na falha delas, nem dor, nem alegria, nem remorsos, nem qualquer outro sentimento inato ou daqueles com que a vida e a educação nos mimoseiam.
Mesmo a minha memória de elefante hesita. Lembro-me do cinzento do dia, contrastando com a alegria soalheira que nos habitava. Sei que não era só a água do mar que me molhava. Lembro-me do espanto de esta estar quente quando cá fora, apesar de ser fim de Agosto, o ar já começava a arrefecer. Disseste-me então ser da corrente quente do Golfo que ali passava. Eu, no fundo, julgava que era o teu calor e sorria. O que me interessava a corrente quente do Golfo? Isso pertencia àquelas fantasias com que os professores nos enchiam a cabeça e os “exercícios” (caramba, que palavra tão em desuso!!!).
A que vem tudo isto, tantos anos volvidos, tanto mar passado por essa corrente? Há pouco, quando prosaicamente estendia roupa na varanda, vi descarregar, duma camioneta, uma espreguiçadeira de lona verde, daquelas de madeira e tudo... e no flash do meu olhar imediatamente me sentei, contigo ao meu lado, nessas duas espreguiçadeiras (pagas a preço de oiro que o dinheiro nesse tempo era pouco) frente ao Mar do Norte, nessa praia belga que dava e dá pelo nome de Coq-sur-Mer.
De Lisboa para a Bélgica, a imediata transferência do presente feito passado quando o olhar nos aporta e nos senta no areal que a memória continuamente refaz.
Lisboa, 3 de Janeiro de 2007
Etiquetas: Escritos
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