Sere-
níssima
Veneza está aqui sob os meus olhos! Esplêndida nos alongados matizes da sua laguna, na cor das suas casas, nas inúmeras pontes que a unificam sob um sol quente. Cheira a maresia e o musgo está mais acastanhado. De pé, num ponto mais alto, avisto a ilha entre as ilhas. Se a memória não me estiver traindo, é aquela onde passei um Verão com o pai. Onde fui feliz. Onde o tive só para mim. O nome foge-me nos lábios que a não sabem pronunciar. Não era Murano de que ambos não gostámos. Não era Burano onde vínhamos frequentemente sempre que eu sentia saudades do arco-íris e onde, num dia de sol, dançámos os dois na praça da igreja ao som de uma música que só nós ouvíamos. A outra, era uma ilha com ruínas onde o pai desencantava peças antigas que, depois de longo estudo, datava, colocava os vários “cacos” em caixas próprias que, devidamente embaladas, eram enviadas para Turim onde eram limpas, levemente restauradas - contrariamente aos desejos do pai - e em seguida reenviadas para a ilha e colocadas no Museu que, ao tempo, era apenas constituído por duas salas quase nuas.
Continuei a deixar o olhar divagar. Procurei a ponte junto à Academia onde o pai gostava de me levar e, onde, manhã cedo, sentados nos degraus me ensinava o cuidado e rápido processo das aguarelas. Ainda devem estar algumas na pasta verde e preta do escritório onde o pai as guardava com todos os meus desenhos.
Deixei o olhar correr para a direita e com o leão da Praça de São Marcos a servir de baliza descortinei aquela igreja que parecia erguer-se da água – S. Giorgio Maggiore onde uma paragem era sempre obrigatória, não por qualquer rito religioso mas para olharmos Veneza e a laguna do alto do seu campanário ou, a horas em que não houvesse turistas, nos colocarmos na coxia da última fila de bancos a olhar a laguna; parecia mesmo que aquela porta desaguava na água pontilhada com as cúpulas de La Salute. Um frio percorreu a minha mão como se nela se tivesse vindo colar a do pai.
Começava a andar na direcção das pequenas ruelas e dos pequenos braços de água que cozem a trama da cidade do lado esquerdo do Gran Canal quando ouvi a voz poderosa e autoritária da minha avó:
- Madalena, saia daí, não vê que a maré está a encher e se cair vai aleijar-se nas rochas dessa poça?!
- Já vou, avó.
- Despache-se.
É sempre assim. Há sempre alguém a interromper estes momentos de íntima paz, silêncio e sonho.
A custo deixei aquelas poças junto às pedras que formam o pontão; a maré baixa estava a avançar em direcção à preia-mar e, daí a pouco, também já nelas seria impossível descortinar Veneza. Abandonei aquele lugar cabisbaixa e tristonha. Quando cheguei ao toldo que minha avó mantinha, invariavelmente, todos os anos, em Agosto e Setembro, perguntei-lhe:
- Avó, lembra-se do nome daquela ilha, perto de Veneza, onde o pai fazia escavações?
- Torcello; porquê?
- Estava ali a olhar as poças e nelas a ver Veneza, a laguna, os palácios, os...
- Chega, Madalena! a menina já não tem idade para viver sempre a sonhar. Isso até lhe faz mal! Se se empenhasse em ser como as outras meninas da sua idade, seria bem mais feliz. O mal foi a sua mãe ter consentido que o seu pai a levasse muito mais tempo do que o estipulado pelo tribunal. Ficou assim, meia aluada, como ele! E agora já é tarde, sobretudo depois de ele lhe ter deixado aquele casarão cheio de tralhas; o seu pai só quis prolongar em si esse reino da fantasia. Viva e deixe-se dessas tretas!
Calei-me. Não valia a pena explicar-lhe que a única coisa boa que eu guardo dessa separação traumática foi os meus pais nunca se terem desunido no que a mim dizia respeito.
Olhei para a minha Veneza que a maré a encher ia desfazendo e, entre céu e água, julguei descortinar um sorriso.
HFM - Ericeira, praia do Sul, 19 de Setembro de 2008
Nota: pequeno conto escrito depois de ter estado entretida a olhar as poças da maré baixa e a pensar nas fantasias que eu criava, quando criança, como o célebre sangue do Capitão nas rochas das Furnas – um conto um dia a escrever.
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