sexta-feira, maio 25, 2007

À margem de um livro


Os olhos percorrem as letras, desembocam nas palavras, atingem a frase e o cérebro apossa-se dela dando-lhe significado, despojando-a do supérfluo ou abandonando-a à metáfora.

Assim estavam os seus olhos e o seu cérebro. Os olhos moviam-se rapidamente, estavam bem treinados para isso, o cérebro registava a ideia, a imagem, a impressão, a teoria. Mas não se ficava por aí. Analisava-a. Procurava o que estava oculto no meio de tantas letras. Aprendia quando desconhecia, rejubilava quando encontrava empatias, endurecia quando os sentimentos eram opostos, lutava quando a sua resistência se esfumava.

Assim estavam os seus olhos. Particularmente aderentes naquele capítulo III. Sentia que todos, hoje, deveriam ler aquelas palavras, aquela análise explanando a natureza do árabe. E o seu cérebro fez mais uma ligação nessa rede de nodos que o habitam, lembrando-se de quem lhe despertara o interesse por esse livro de que já tanto ouvira falar - OS SETE PILARES DA SABEDORIA. Não descansara enquanto o não comprara e, enquanto lera esse capítulo, de novo pairara sobre ela a ideia que sempre a perseguia. Quantas pessoas já o teriam lido antes de si? Quantas? Muitas, seguramente. Com que motivações? Diferenciadas. Qual o tipo de leitura? Ora com um interesse sumário e distanciado ora com o vínculo de estudar essa figura ímpar que fora Lawrence ora numa tentativa de compreender esse povo do deserto. Ou ainda por tantas outras razões que ela não conseguia verbalizar.

Houve sempre alturas em que pensou que, de alguns livros, deveriam registar-se as impressões após a sua leitura e publicá-las ou pelo menos, de alguma forma, ficarem acessíveis ao público eventualmente interessado. Não como verdades absolutas ou condicionantes de outras análises mas com a pureza de cada interioridade e de cada compreensão. Assim se poderia confrontar e alargar a limitada análise das palavras e da compreensão de cada livro.

Contraporeis que há muitas análises de livros. Certo. Mas quem garante que são elas as melhores? Que não houve um anónimo leitor, vulgar, sem credenciais, sem acesso a editores que dele fez a mais magnífica das abordagens, a mais sublime leitura?

Tudo isto lhe lembrava o que sempre havia sentido quando se recriava, observando um edifício fosse ele um palácio, um castelo, uma abadia, uma catedral, uma ponte, etc. Dele apenas conhecia, quando era o caso, o(s) nome(s) do(s) seus(s) arquitecto(s) e sempre, se a memória o não tivesse enterrado, o(s) nome(s) de quem o mandou construir; o nome dos diversos artistas que lhes deram vida, forma, beleza e o transformaram nessa grandiosidade perene estava, geralmente, envolvido no mais completo silêncio. Ainda hoje julga que o esquecimento desses vultos de sombra deve ser o preço a pagar para que essa obra continue eternamente bela.

Recordava um livro que tinha lido em que o personagem dizia frequentemente: “- Quando eu for ditador farei isto, aquilo, aqueloutro...”. Não raras vezes lhe apetecia dizer: - Quando eu mandar, por cada livro lido a pessoa deverá fazer uma apreciação crítica por escrito que, obrigatoriamente, se juntará a esse livro numa determinada biblioteca para o efeito criada, biblioteca essa aberta a todos que queiram confrontar-se com a informação e análise sobre cada livro aí residente. Troca de ideias geradora de impulsos interrogativos, os únicos que levam o homem a ultrapassar-se.

Perfeito disparate?

Nem lhe interessava a resposta. Muitos terão sido os que se debruçaram sobre este livro, sobre a vida de Lawrence, sobre os locais por onde ele andara e ela, ali sentada no sofá, estava privada dessa informação, desse conhecimento que, para além das palavras de Lawrence, poderiam alargar e engrandecer a análise sobre o assunto. Contrariamente ao que hoje é socialmente correcto, ela não pensava que as suas ideias e opiniões fossem as melhores, que a sua análise fosse a mais pura, que as suas deduções fossem as primevas.

Sabia que somos apenas sedimentos e que é do confronto que nascem as pistas e que é nelas que o caminha se purifica.




hfm - Lisboa, 17 de Setembro de 2006


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