quinta-feira, janeiro 27, 2005

Diálogos na Brasileira - hfm




O homem, impecavelmente vestido, com um ar um pouco dandy para a sua idade, encontrava-se sentado numa das mesas do fundo da Brasileira. Sentava-se muito direito, dominando a sala e controlando as entradas e saídas.

Nisto, levantou-se. Abotoou o casaco e estendendo a mão disse:

- Olá, meu bom amigo. Sente-se – e ia afastando a cadeira.

Quando o outro se sentou, de costas para o observador, o homem continuou o seu diálogo:

- Então, como está? Ao que me parece, tudo bem! Ainda bem que o vejo, pois estava para lhe escrever depois de ter lido o seu último livro de poemas; queria dizer-lhe o quanto gostei dele. Aquilo sim, meu caro, aquilo é poesia! Moderna, inventiva, descarnada e contudo com todos os traços do passado que criam o elo entre os nossos bons poetas e a modernidade que se quer trazer para a literatura. Tudo a correr bem?

Que sim, ia dizendo o outro, a custo, no meio dos vários encómios e da fértil torrente de palavras com que o seu interlocutor o metralhava. Publicar é difícil mas lá o tenho conseguido, ia dizendo o pobre poeta.

- Se precisar de mim já sabe, conte comigo. Sempre posso falar a um ou a outro dos nossos vates que seguramente depois de lerem o que o amigo escreveu, não vão deixar de lhe dar uma mãozinha.

Um esgar sem jeito atravessava o rosto do nosso poeta enquanto ia agradecendo. - Mas por ora vou indo devagar, tentando não me enredar nos nós intrincados de que é construída a teia da nossa praça.

- Nada disso, homem! O importante, meu caro amigo, é conhecer as pessoas certas! Já agora, se não é indiscrição, como conseguiu chegar à Editora?

Que fora regularmente simples, dizia o poeta numa voz esquiva, embora demorado. Tinha enviado o manuscrito a três editoras ficando à espera da resposta. E continuou dizendo que tinha de se ir embora pois o trabalho esperava-o e a poesia não pagava a renda de casa!

- Para a outra vez fale comigo, meu querido amigo. Como sabe estou sempre aqui, este é o meu escritório e até pode ser que me encontre numa dessas tertúlias a que deveria assistir. Desculpe... ó minha boa amiga que prazer vê-la por aqui, deixe-me apresentá-la, Lígia Abrantes uma nossa artista do palco e aqui o nosso vate Pereira Castro que acaba de lançar o seu segundo livro.

Apertaram-se as mãos e rasgaram-se dois sorrisos.

- Mas sente-se, minha querida amiga, aqui o nosso poeta estava de saída – e arredava a cadeira para que Lígia Abrantes se pudesse sentar.

O poeta, esboçando um sorriso, foi dizendo que tinha sido um prazer conhecê-la mas agora precisava mesmo de ir pois o trabalho esperava-o. E voltando-se para o outro foi dizendo que sim, que viria um dia e foi-se afastando fazendo uma pequena vénia.

O homem fez um trejeito com a cabeça e um sorriso enigmático apareceu-lhe nos lábios; mas rapidamente mudou o seu centro de interesse para aquela jovem que ali se encontrava.

- Então, minha amiga, como tem passado, o trabalho muito cansativo? essas representações?

- Ó senhor doutor, não esteja a brincar comigo, o meu trabalho é sempre o mesmo e eu não represento, sou apenas corista na revista, como o senhor bem sabe.

- Sei sim, Lígia, mas isso não me impede, ao olhar para o seu corpo escultural e para os seus movimentos dignos de qualquer ballet moderno, de sentir que a minha amiga está muito mal aproveitada. Temos que pensar nisso, se calhar apresentá-la a alguém que saiba reconhecer o seu talento e tirá-la desse corpo de bailado onde a minha boa amiga está estiolando – disse o nosso homem numa voz cava e insinuante.

- Ó senhor doutor, o senhor cria sempre em mim expectativas mas a vida é bem diferente – e Lígia levava a mão à cara num estudado gesto de coquetterie.

- Sabe bem que não, sabe que não, a Lígia é que ainda não se quis entregar nas minhas mãos. Qual Pigmaleão faria de si uma actriz! Venha almoçar aqui amanhã comigo, terei muito prazer em oferecer-lhe o almoço e hoje falarei a um director de teatro meu amigo e convidá-lo-ei também para vir almoçar; tem é de me deixar representá-la. Virá arranjada como lhe falei da última vez e deixa a conversa toda a meu cargo. Basta que sorria e que responda o mais brevemente possível às perguntas que ele lhe fizer, eu completarei as suas respostas. Está de acordo?

- E acha que isso vai resultar, senhor doutor? sou uma pobre mulher que tem apenas a 4ª classe e que não tem qualquer cultura – disse Lígia numa voz onde havia um misto de entusiasmo e medo.

- A cultura não é para aqui chamada e claro que resulta, minha querida Lígia, o importante é que me deixe construir a sua carreira e que se entregue nas minhas mãos para que eu a possa moldar.

- Ó senhor doutor mas eu não tenho dinheiro para lhe pagar, como posso eu aceitar isso?

- Não precisa de me pagar agora, minha boa amiga, um dia quando estiver lançada, quando for conhecida, só tem que me deixar ser o seu agente mas isso ficará tudo escrito no contrato.

- Contrato? Qual contrato, senhor doutor? Eu já tenho uma contrato com o Maria Vitória.

- Ó mulher, não se preocupe! Se o director com quem nos vamos reunir amanhã a aceitar, trataremos de ultrapassar esse problema, para isso servem os advogados e então far-se-á um novo contrato delegando na minha pessoa a responsabilidade de construir a sua carreira e tornando-me o seu agente; vai ver que lhe vamos fazer uma óptima carreira. E agora desculpe-me mas acaba de chegar um pintor meu amigo com quem preciso de trocar algumas palavras. Não se esqueça de estar aqui amanhã à uma da tarde, arranjada como lhe falei da última vez, tentando não dar nas vistas e falando o menos possível. Então até amanhã – disse ele enquanto se dirigia a um homem meio desengonçado que acabava de chegar, deixando em cima da mesa o livro, a cigarreira e o isqueiro de prata.

- Muito obrigada, senhor doutor, amanhã cá estarei – disse Lígia num tom de voz baixo e um pouco subserviente.

- Como vai, meu caro pintor? há muito tempo que o não via – disse o nosso homem enquanto, em passinhos pequenos e agitados, estendia a mão a um homem alto, com um corpo que parecia não dominar a gravidade, com uma idade indefinida e que o olhava com um ar meio apatetado.

- Não se lembra de mim, meu caro pintor? Alexandre Mesquittela, conhecemo-nos no ano passado na Embaixada Francesa e gabei-lhe muito as suas obras; sou um grande admirador seu, só não compro as suas telas porque não tenho dinheiro para o fazer mas espero que em breve elas estejam em algum museu para gáudio de todos os portugueses.

- Pois realmente não me lembro de si, desculpe, esta minha cabeça anda sempre noutro lugar – disse o pintor com um ar de enfado.

- Oh, não tem importância! é perfeitamente natural, venha, sente-se ali na minha mesa e tome um cafezinho comigo – e ia fazendo um gesto na direcção da sua mesa.

- Não, muito obrigado, infelizmente não posso. Esperam-me no café Gelo onde tenho um negócio a tratar. Vim aqui apenas entregar uma coisa. Muito boa tarde, foi um prazer – e o pintor, sorrindo, desviou-se e dirigiu-se ao balcão onde deixou ficar um volumoso envelope.

Alexandre dirigiu-se à sua mesa e eu, que o observava junto ao quiosque dos jornais, reparei que na sua cara perpassava um ar de incredulidade e raiva. Havia espanto e um ríctus que se assemelhava a vingança. Vi-o sentar-se, tirar da sua cigarreira, impecavelmente limpa, um longo cigarro que, num gesto de enfado, levou aos lábios e acendeu. Nisto, como se uma mola o tivesse propulsionado, levantou-se num repente e atónito vi-o dirigir-se na minha direcção. Um pouco antes de chegar ao local onde eu estava, ouvi-o dizer:

- Como está senhora dona Maria Ana? Há quanto tempo não tinha o prazer de a ver e o seu marido? muito ocupado, não é verdade?

- Alexandre?! até me assustou, não o tinha visto.

- É que eu estava ali ao fundo, mas quando a vi entrar, não pude deixar de vir cumprimentá-la. A senhora é para mim uma referência. Sempre o foi quando eu ainda petiz assistia a alguns serões na casa de meu pai – e o peito de Alexandre como que empurrava a camisa e os colarinhos impregnados de goma.

- Onde isso já vai, Alexandre. Infelizmente o seu paizinho já morreu e eu e o senhor desembargador para lá caminhamos. Mas desculpe, Alexandre, tenho ali umas amigas com quem vim lanchar e que já se impacientam.

- Ó senhora dona Maria Ana desculpe esta incorrecção mas é sempre tão bom revê-la que nem reparei que a estava a atrasar. Os meus cumprimentos ao senhor desembargador – disse, enquanto cerimoniosamente beijava a mão da senhora.

Alexandre ainda deu dois passos em direcção à sua mesa, mas voltou para trás e dirigiu-se à porta, antes de sair, olhou-me com um ar superior, com aquele ar com que se olha para aqueles que desprezamos.

Saiu para o largo adjacente onde apanhou um pouco de ar, querendo parecer-me que estava a tentar que o ar frio lhe fizesse passar o corado que tinha invadido as suas faces e que era fruto da raiva e da frustração.

Nisto, viu a meio da Rua Garrett o antigo sub-secretário das Colónias e apressou o passo na sua direcção.

- Hernâni, há quanto tempo, homem! por onde andas metido? – e abraçava-o efusivamente.

- Por onde ando metido? a trabalhar, Alexandre! Acabaram-se as mordomias, agora tenho de trabalhar! E tu, o que fazes? onde estás a trabalhar? – disse o outro libertando-se daquele abraço.

- Eu? mas eu não trabalho, Hernâni! Eu vivo dos rendimentos e o meu escritório, como sabes, é ali na Brasileira! A propósito, tenho lá a minha mesa não queres vir tomar um cafezinho? – disse ele enquanto apontava na direcção da pastelaria.

- Até que me ia bem um café! Mas não me posso demorar muito, tenho de ir ali à Rua da Horta Seca tratar de uma escritura.

Vi-os aproximarem-se na minha direcção e Alexandre, com a mão nas costas do amigo, ia-o empurrando na direcção da sua mesa.

- Não me digas que tens aqui mesa reservada?!

- É mais ou menos isso. Como venho para aqui todos os dias, o criado já me guarda a mesa até uma determinada hora; como podes ver é uma mesa de onde domino toda a sala – e Alexandre estava impante e sorridente.

- E o que fazes tu aqui? – perguntou Hernâni com a curiosidade que advém da incompreensão.

- O que faço? O meu trabalho. Dar-me com pessoas. Estar atento a tudo. Conhecer os últimos episódios desta nossa cidade e sociedade. Ver os outros e, acima de tudo, ser visto para que nunca se esqueçam de mim! Mas porque perguntas?

- Porque me faz um pouco de confusão que passes aqui os dias sem fazeres nada. – retorquiu Hernâni.

- Sem fazer nada! Aí é que tu te enganas, Hernâni! Ainda há pouco consegui que uma coristazinha de má fama e sem qualquer mérito se entregasse nas minhas mãos. Em breve há-de ir parar à minha cama e com uns conhecimentozinhos hei-de fazer dela uma actrizita e hei-de ficar com uma boa parte do contrato que lhe hei-de arranjar. E escusas de me olhar com essa cara! Lá nas tuas economias tu fazes o mesmo, só que por outros processos! Olha, ainda hoje tentei junto de um poeta de segunda trazê-lo para a minha esfera para poder dali obter algum dinheirito, mas o raio do tipo é mais curial do que eu pensava e disse-me que não tem pressas, que vai devagar, que não quer ser arrastado pelos lobbies e mais umas bojardazitas deste teor! coitado, um idealista! com esses geralmente não levo nada! Realmente hoje o dia não me está a correr nada bem!

E pela primeira vez reparei que os ombros de Alexandre descaiam como que numa derrota antecipada. Mas rapidamente se recompôs.

- E o que é para ti um dia a correr bem? – perguntou o amigo.

- Um dia em que saia daqui com um programa qualquer para o jantar ou para a noite e com algum negociozito que me vá dando para sobreviver. Mas hoje nem o raio da velha duquesa que está ali no meio daquele grupo de senhoras de idade e que foi amiga de meu pai e com quem convivi muito durante a minha infância se lembrou de me convidar para ir lá a casa e até o estupor de um pintorzeco da nossa praça que anda aí nas bocas do mundo, sabe Deus porquê pois só pinta mamarrachos, até esse fez de conta que não me conhecia!

- Ó homem, mas isso não tem importância nenhuma, precisas de alguma coisa?

- Não, não é isso, é que ele há dias! Até aquele estafermo ali parado à porta não tira os olhos de mim – disse Alexandre enquanto apontava na minha direcção.

Vi Hernâni voltar-se e olhar-me, abrir um sorriso e cumprimentar-me.

- Quem? o Carlos que eu cumprimentei agora? – e perante a aquiescência do amigo, completou – mas o Carlos é um pobre homem que não faz mal a ninguém. Tomara ele que ninguém lhe tivesse feito mal. Calcula que o homem até envelheceu imenso e não é para menos! Está desempregado. Foi trabalhador no Montepio durante anos até que um cliente, sem escrúpulos, lhe conseguiu extorquir uma avultada quantia em dinheiro, não lhe pagou e o pobre do Carlos viu-se impossibilitado de repor o dinheiro. Teve um processo e foi despedido. E teve muita sorte em não lhe terem movido um processo externo que envolvia polícia e tudo. O homem ia enlouquecendo. Anda há dois anos à procura do gajo que o lixou e diz que quando o encontrar se há-de vingar dele. Um pobre diabo que teve muito azar!

Vi Alexandre empalidecer. Pigarreou, ajeitou o colarinho e o casaco. Fez um esgar que, por breves instantes, lhe distorceu a cara e numa voz meia atabalhoada perguntou:

- Disseste que ias à Rua da Horta Seca, não foi? – e perante o sinal afirmativo do amigo continuou. – Então espera que eu vou contigo. Aproveito e passo no meu solicitador. É que ando cansado e com vontade de fazer uma viagenzinha até à Côte d’Azur, está a chegar a saison; tenho de tratar de tudo mas antes vou ver com ele do que preciso para partir e da melhor forma de ter lá o dinheiro disponível, não gosto de andar com muito dinheiro. Vou contigo.

Levantou-se quase deitando abaixo a cadeira e virando-se para o criado disse:

- António, eu amanhã pago a conta, agora estou com pressa e tenho de sair já.

Alexandre deixou passar à sua frente o amigo e em silêncio dirigiram-se para a porta. Passaram ao meu lado. Hernâni baixou-me a cabeça. Alexandre fez que não me viu.

Saí. Vi-os dirigirem-se para o Largo do Camões, deixei-os afastarem-se uns metros e, com a brisa a bater-me na cara, segui-os como se segue um cão de caça.


Lisboa, Março de 2003



hfm

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