Pelas tardes quentes
Havia os cheiros das casas grandes. O cheiro do pó de arroz das tias velhas que ficavam sentadas todo o dia esperando as diversas horas da comida e o conforto de algumas palavras. O cheiro dos perfumes da primas mais velhas, insípidas águas de colónia que encharcavam os corpos por despontar. O outro cheiro meio almíscarado a Heno de Pavia e a Madeiras do Oriente e depois o inconfundível cheiro de minha mãe – Femme (ainda hoje me lembro de enterrar a cabeça na sua almofada e de me embriagar desse cheiro intenso e doce). Havia o cheiro dos nossos corpos de criança a que os sabonetes de glicerina retiravam o frequente e célebre OC=Odor Corporal. Por cima de tudo isto os cheiros que vinham da cozinha por essas tardes de calor e o inconfundível cheiro das framboesas que, em breve, adornariam a tarte ou qualquer outra sobremesa que os meus olhos devorassem ao nível da mesa. O inconfundível nível da mesa! Demasiado grande para me colocarem uma almofada, havia primos mais pequenos, demasiado pequena para chegar a um aceitável nível de domínio sobre a mesa. A raiva e os cheiros dominavam essas tardes de criança.
Ao fundo, imperceptível, o rio corria, o laranjal estendia-se na parte de trás da casa e ao lado, junto à igreja - o claustro. As colunas que suportavam os arcos e a varanda que em cima se estendia. A pequena fonte no centro e os buxos formando pequenas áleas. Era belíssimo aquele claustro. Encantava a minha fantasia de criança e sobrepunha-se a todos os cheiros. Era ali que eu me perdia. Era ali que a velha Tóina me vinha encontrar quando todos andavam à minha procura. Começava a sentir no saibro um ritmado som, agora mais rápido, agora mais prolongado, de novo mais rápido, outra vez mais prolongado e assim sucessivamente; já sabia que era a Tóina arrastando as suas pernas cheias de rumático, como ela dizia. A Tóina que me pegava ao colo e me aconchegava naqueles peitos grandes junto a um alvo avental e que, enquanto me mimava e beijava, ia dizendo:
- A menina não vê que não pode vir para aqui sozinha? Anda tudo à sua procura. Olhe que a mãezinha vai-lhe ralhar!
Eu colocava os braços em redor do teu pescoço e descansava sabendo que tu encontrarias qualquer desculpa que não deixasse a mãe ralhar-me. Eu sabia que enquanto ali estivesses nada de mal me podia acontecer. Quantas vezes hoje ainda penso nesse teu avental, no cheiro a sabão “macaco” e no perfume da tua ternura.
Eram longas as tardes junto ao Nabão. Longas e quentes. Os cheiros da terra confundiam-se com os cheiros da casa e das pessoas e as brincadeiras saltavam dos jogos em roda para o cavalo, o Negus ou o pingue-pongue. Ainda me lembro do focinho do Bob, junto à mesa a virar-se para a esquerda e para a direita esperando que a bola saltasse de cima da mesa para que ele a pudesse abocanhar. Lembro-me sempre desta cena quando vejo, na televisão, os jogos de ténis e as cabeças dos espectadores tão semelhantes ao focinho do Bob.
Mas é ao claustro a que voltam todos os meus sonhos quando, em tardes quentes como a de hoje, os cheiros invadem a memória e se fixam nos meus mortos.
2005
Etiquetas: Escritos
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