domingo, agosto 12, 2007

Centenário - Miguel Torga





Requiem por mim

(Coimbra, 10 de Dezembro de 1993)



Aproxima-se o fim.
E tenho pena de acabar assim,
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino.
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio.
Rio feliz a ir de encontro ao mar
Desaguar,
E, em largo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.




Memória

(Coimbra, 1 de Novembro de 1983)



De todos os cilícios, um, apenas,
Me foi grato sofrer:
Cinquenta anos de desassossego
A ver correr,
Serenas,
As águas do Mondego.




Chaves, 4 de Setembro de 1980 – Bem gostava de o ouvir com outros ouvidos e acreditar nas suas apreciações generosas. Mas não. Infelizmente, em matéria literária, ninguém me pode dar segurança. Insegurança, sim. Agora tirar-me deste inferno em que me deixa cada obra literária editada, só a morte. A publicação de um livro é um jogo em que o autor se arrisca eternamente numa roleta diabólica, sem nunca chegar a saber se ganhou ou perdeu. E como precisamente desafio neste momento, mais uma vez, os azares do prelo, é já esse sentimento de réu em perpétuo julgado que me dilacera. Cada palavra propícia que eventualmente chega até mim, em vez de consolo, dá-me a impressão de ficar com a sorte agravada. À mercê do futuro e empenhado ao presente.



Miguel Torga, Diário XIII, Coimbra, Edição do Autor, 1983



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