sexta-feira, outubro 01, 2004

Bluff&Caos

BLUFF&CAOS
(poema/narrativa)

Helena Faria Monteiro


1º Narrador

Aconteceu a 11 de Setembro de 2001. Tudo mudou. Enegreceram-se as vidas nos meandros do medo. Não mais. Perderam-se as memórias nas incógnitas do silêncio. Começou o caos.

2º Narrador

Enganas-te. Já houve outros 11 de Setembro e a vida continuou. Há incomensuráveis bluffs escondidos no caos. Das cinzas regressará a vida.

1º Narrador

Nada. Nunca nada foi assim. Nem guerras. Nem cataclismos. Nem assaltos. Nem usurpações. Nem racismos. Perdeste a liberdade no caos da inconstância. Da dor. Do medo. Do imprevisível.

2º Narrador

Um dia a História te esclarecerá. E verás que o ódio gera ódios. A prepotência organiza a resistência.



Correram as dores no horror das angústias.
Atropelos.
Já não há acordes nas melodias
os violoncelos calaram-se e a harmonia
despedaçou fragmentos no som dos oboés
as palavras perderam os sentidos e os homens
desaprenderam os sons dos fonemas.
Ó humanidade, pobre rebanho acossado
onde te instalaste?
Medo dos medos tolheram-te
a fala e o respeito.
Quem te destruiu? Onde estão os lugares
paradisíacos onde os homens lavavam
as impurezas acumuladas?
Onde os amanheceres rubros desaguando
nos lagos dos pôr-do-sol reflectidos?
Onde as mãos que arriscam gestos
cúmplices e desassombrados?
Onde os risos casuais fluindo
nas crianças nunca perdidas.
Onde? Onde?
O vazio navega pelo mundo e teme-se que pela galáxia.



CORO

Haveis de ouvir o medo e a dúvida seguir-vos-á no fluxo das dores.
Trevas. Mutilações. Mortes. Horror.
A paz está esfumada nos meandros dos medos.



1º Narrador

Continua. A desordem instalou-se e rebenta quando menos se esperar. Além. Aqui. Noutro lugar. Por todo o lado. Numa acelerada imprevisibilidade. Temos de lutar. Fazer frente à fúria demoníaca. À besta a abater. Temos de os dizimar.

2º Narrador

Dizimar quem? Esses? Os visíveis? As bestas que atacam às claras? Se sim, então também terás de dizimar os outros. Os que lenta e consentidamente vão destruindo o planeta. Os que sonegaram o futuro das crianças. Os que armam aqueles que queres destruir. Os belicistas endémicos protegidos na capa de vítimas antigas. Os desesperados que comoveram o mundo e hoje usam armas idênticas e só não chegam à solução final porque ainda não dominam o mundo. Bluffs, meu amigo. Ódios bélicos disfarçados na máscara do dinheiro e do poder.

1º Narrador

Não compares. A besta é incivilizada. Não merece sobreviver.

2º Narrador

A tua linguagem é o caos do ódio. Os teus são a parede que separa o bem do mal. Que bem? Que mal? O engano utópico da ganância sem preço? A liberdade espezinhando a vida daqueles que mantêm atrás do arame farpado da injustiça, da miséria, da raiva, da terra roubada, da fome, da incultura, da subsistência? A paz fétida do arrogante vencedor? Bluff da prepotência!



Os sentimentos perderam os sentidos
exangues congelaram no espanto
entregues à solidão já não sonham
vagueiam e isentam-se de ser.
Amorfos, extenuados, autistas
no limbo do medo medem a ausência.



CORO

Haveis de ouvir o medo e a dúvida seguir-vos-á no fluxo das dores.
A ausência de ser ou de sentir só prolonga o caos.
A paz está esfumada nos meandros dos medos.



VOZ

Trantantan... Trantantan... Trantantan... São gratuitas as palavras. E eles continuarão sempre este diálogo de surdos. O Tântalo das palavras. A imbecilidade da prosápia.



Há rostos esfumados nas saliências dos medos
obtusos circuitos onde a humanidade se acolhe
nem acção nem promessas ¿ sobreviventes ¿
perseguindo passos perdidos
subsistemas na amálgama das raças
dos credos
das motivações insuspeitas já previamente
vendidas.
Rostos fatigados perseguindo
o solitário poder de uma vida agasalhada
no conforto, no dinheiro, no poder, na condição
acobertada atrás do colete à prova de balas
dos vidros inquebráveis
dos seguranças
da ausência de dúvidas
da liberdade perdida.
Rostos sem idade bloqueados nas rugas
esteticamente depiladas no padrão obrigatório
do perfil.
Indiferente passa o vento
ululando divertido
esfumando ainda mais os rostos despercebidos.
Senhorial na sua força
natural e bruta.



CORO

Haveis de ouvir o medo e a dúvida seguir-vos-á no fluxo das dores.
A sobranceria espetou-se no arame que vos protege a alma.
A paz está esfumada nos meandros dos medos.



1º Narrador

Não poderá haver tréguas. Só morte. A espiral cresce e nós temos de os destruir. Outras torres se reerguerão quando as bombas, qual avião, tiverem acertado no embrião de vida que os prolonga. Erradicação. Destruição. Os fins sempre justificaram os meios. A História tem de ser reescrita.

2º Narrador

Antes de carregares no botão diz-me onde fica a terra a abater. No meio dos ímpios prefiro permanecer.

1º Narrador

Nunca aprenderás. É por aqueles como tu que o mundo não progride. Para que queres a consciência ao arrepio das certezas? Estúpido. Sai da frente. Foge que o ódio é mais seguro.

2º Narrador

Encontrar-nos-emos um dia, amigo. Não te esqueças da cíclica mutação da vida. Adeus. Até ao rio sem caudal, ao porto dos homens sem retorno.



Ouve-se demasiado o silêncio e o ar está parado.
Há cinzas cobrindo o campo de visão
e os pulmões bloquearam.
Os uivos desapareceram e o vento passou.
Paralisaram os gestos nos tubos
por onde verteram a anestesia.
A chuva desviou-se da rota e já não lava
as fúrias enegrecidas.
As lágrimas partiram e não encontraram
o caminho do retorno.
O mar enrolou-se no vapor das angústias
secando nas bocas sem saliva.
Já não há sinos nos medos e a cabeça
esvaziou-se de ideias na fúria do caos.




-Louco, sim, louco, porque quis grandeza

Porque o que me importa é que já nada importe...
Nada nos vale
Que se debruce sobre nós a Sorte,
Ou ténue e longe, cale
Seus gestos... Tudo é o mesmo... Eis o momento...
Sejamo-lo... Pra quê o pensamento?...


As coisas não têm significação: têm existência
As coisas são o único sentido oculto das coisas.


Inglória é a vida, e inglório o conhecê-la.
Quantos, se pensam, não se reconhecem
Os que se conheceram!
A cada hora se muda não só a hora
Mas o que se crê nela, e a vida passa
Entre viver e ser.


Cárcere do Ser, não há libertação de ti?
Cárcere de pensar, não há libertação de ti?
(*)




Por entre os rugidos do vazio escorrem
indeléveis artroses de esperanças
pequenos borrões de fantasias
involuntários sonhos desprezados despregando-se
do valor dos ódios e medos.
Restos sobras migalhas
águas embaçadas de impurezas
caleidoscópios filtrados nas vagas horas
onde o sol se acoita e o rubro intenso do pôr-do-sol
se afirma
e repete.
E tudo se repete numa cadeia ilógica
só mais uma passo e espera
no desvão entreaberto de ti
o regresso da chuva, do vento, do mar
também da vida
e dos homens.
O segredo dos silêncios e das palavras
e a teimosa fé de prosseguires.



CORO

Haveis de ouvir o medo e a dúvida seguir-vos-á no fluxo das dores.
Já não há vida nas verdades e os ventríloquos morreram asfixiados nas utópicas cordas vocais. Bluffs no caos da memória.
A paz está esfumada nos meandros dos medos.



VOZ

A injustiça será vingada no sangue dos arautos da verdade.
O poder em pó se purificará.
Na ausência do rancor renovar-se-á a liberdade.
E do murmúrio anónimo ressurgirá o advento pacificado
do homem novo prometido.

Criança de rasgados olhos amendoados unindo
na fusão das raças e credos todo o ódio antigo.




(*) Fernando Pessoa e seus heterónimos


Lisboa, 23 de Novembro de 2002

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